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COMO SE FORA UM CONTO
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Acho
o futebol um desporto engraçado.
Não que alguma vez o tenha jogado, pois que
para tal prática era uma perfeita nulidade, mas gostava de ver.
Na altura, já
lá vão muitos anos e era eu sócio do F C Paços de Ferreira com o nº 2022, nunca
me esqueci do número, ia com o criado (empregado para todo o serviço e homem de toda a confiança) do meu
avô paterno, ou com um tio ou ainda com um primo do lado materno, ver a bola,
no campo do Paços e uma ou outra vez no campo do Freamunde.
O que mais me
interessava era o espectáculo à volta das linhas brancas. O que os vinte e dois
homens de cuecas, onze de cada lado com camisolas diferentes conforme os lados,
e os três senhores de preto (na altura estavam sempre de preto) faziam,
correndo atrás de uma bola, não era muito do meu interesse.
Mas o que os
acompanhantes, os adeptos, os simpatizantes de cada uma das equipas em
confronto estavam a fazer ou dizer, tinha toda a minha atenção. Eram umas
centenas de almas a gritar a plenos pulmões, insultos, desabafos, incentivos e o
mais que fosse, para dentro do campo. Às vezes também para fora do campo, para
os outros, para os da outra equipa, para os "inimigos".
Os jogos mais
interessantes eram os que punham frente a frente o Paços (de que eu era adepto
e sócio por causa da minha família paterna) e o Freamunde (de que eu era
adepto, embora não sócio, por causa da minha família materna).
Em todos os
jogos a que assisti, havia num dado momento pancadaria. Os de Paços e os de
Freamunde, vilas (à altura destes acontecimentos) que distavam entre si cerca de três quilómetros, eram inimigos
figadais. Essa inimizade alastrava-se para fora do campo de futebol chegando ao
cúmulo de um jovem de uma das vilas não poder casar com uma jovem da outra.
No
caso dos meus pais, o meu pai era de Paços e a minha mãe de Freamunde, isso não aconteceu, a proibição, tão só porque a minha mãe, apesar
de ter toda a família a viver em Freamunde, tinha nascido no Porto. Sorte a
deles, que assim puderam ser felizes.
Mas
voltando ao jogo, na verdade os encontros entre as duas equipas, eram sempre
acompanhados de encontros físicos entre os adeptos e muitas vezes também entre
os jogadores.
Naquele
tempo, não havia claques organizadas, os adeptos não estavam separados, não havia bancadas,
à volta do campo só havia uns quantos metros de terra batida, de um dos lados
com alguma inclinação. Por todo o lado havia gente. Alguns, empoleirados nos
postes ou no muro que circundava o campo, ou em cima das cabines dos jogadores
ou dos árbitros ou ainda em cima de uma cabine existente num dos lados e perto
da porta de entrada e que eu supunha ser de electricidade.
Quando
a pancadaria começava, fosse qual fosse o motivo, uma falta mal assinalada, uma
rasteira de um jogador a outro, ou simplesmente porque sim, ninguém sabia quem
era quem. Pelo menos eu não sabia. De imediato, a pessoa que me acompanhava,
fosse o sr Aurélio, ou o meu tio ou um qualquer primo, empurravam-me para um
canto, de maneira a que eu estivesse protegido das arremetidas dos populares.
Numa das vezes, em que essa acção foi menos lesta, ouvi de repente uma voz a meu lado, "Paços ou Freamunde?". Bloqueei sem saber que responder. Fosse qual fosse a resposta, poderia ter como prémio um murro. Salvou-me o meu tio, que me arrastou de imediato para o lado. Por todo o lado estava espalhada uma batalha campal. Já não me lembro de como saímos do campo, mas sei que essa terá sido uma das últimas vezes em que fui ver um Paços-Freamunde, já que a minha avó teve conhecimento do caso e proibiu terminantemente fosse quem fosse de me levar, ordem que foi ainda algumas vezes desrespeitada.
Desde essa época para cá, as coisas não mudaram muito no mundo do futebol. A rivalidade continua, os adeptos da outra equipa são inimigos, os árbitros erram e são insultados, os jogadores são incentivados, e de vez em quando, em quase todos os jogos de equipas rivais, há assistentes que medem forças uns com os outros. Hoje como antes, acarinham-se os que cometeram os erros que nos são favoráveis e invectiva-se quem praticou os que nos prejudicaram. Hoje, como antes, as ameaças aos árbitros e aos dirigentes, incluem as de morte.
Uma coisa mudou, para mim a mais importante.
Os jogadores já não são da equipa A ou B. Já não são adeptos da equipa em que jogam. Já não vestem a camisola do clube com amor e entrega total. Os jogadores são uns meros empregados, contratados a peso de ouro, que ora estão nesta equipa, ora estão no seu rival mais directo, desde que o vencimento mensal ou de prémios seja aliciante. O dinheiro tomou conta do futebol, como aliás tomou conta de toda a nossa existência. Os jogadores são tratados como mercadoria. O que interessa são os milhões. O futebol profissional, aquele de que toda a gente fala, aquele sobre o qual toda a gente lê, aquele que move multidões, já não é um desporto, é uma profissão. Os jogadores, os treinadores e outros agentes do futebol, ganham quantidades de dinheiro estupidamente altas, absurdamente elevadas, que são uma afronta à fome, ao desemprego, às dificuldades que o comum dos mortais vive diariamente. São uma afronta a todos nós, e mesmo assim, esta indústria, move multidões, que paga bilhetes a preços exorbitantes, quotas elevadas, lê avidamente os jornais que diariamente falam de futebol, ouvem atentamente todos os programas de rádio e de televisão sobre futebol, como se nada mais no nosso quotidiano interessasse. Quantos, para pagar o bilhete que para além das quotas mensais têm de comprar para assistir aos jogos, não deixam mulher e filhos em casa, sem apoio económico.
Hoje, como antes, o futebol aliena as mentes, desde as dos mais sábios às dos mais tacanhos, desde as dos mais educados, às dos mais burgessos.
Numa das vezes, em que essa acção foi menos lesta, ouvi de repente uma voz a meu lado, "Paços ou Freamunde?". Bloqueei sem saber que responder. Fosse qual fosse a resposta, poderia ter como prémio um murro. Salvou-me o meu tio, que me arrastou de imediato para o lado. Por todo o lado estava espalhada uma batalha campal. Já não me lembro de como saímos do campo, mas sei que essa terá sido uma das últimas vezes em que fui ver um Paços-Freamunde, já que a minha avó teve conhecimento do caso e proibiu terminantemente fosse quem fosse de me levar, ordem que foi ainda algumas vezes desrespeitada.
Desde essa época para cá, as coisas não mudaram muito no mundo do futebol. A rivalidade continua, os adeptos da outra equipa são inimigos, os árbitros erram e são insultados, os jogadores são incentivados, e de vez em quando, em quase todos os jogos de equipas rivais, há assistentes que medem forças uns com os outros. Hoje como antes, acarinham-se os que cometeram os erros que nos são favoráveis e invectiva-se quem praticou os que nos prejudicaram. Hoje, como antes, as ameaças aos árbitros e aos dirigentes, incluem as de morte.
Uma coisa mudou, para mim a mais importante.
Os jogadores já não são da equipa A ou B. Já não são adeptos da equipa em que jogam. Já não vestem a camisola do clube com amor e entrega total. Os jogadores são uns meros empregados, contratados a peso de ouro, que ora estão nesta equipa, ora estão no seu rival mais directo, desde que o vencimento mensal ou de prémios seja aliciante. O dinheiro tomou conta do futebol, como aliás tomou conta de toda a nossa existência. Os jogadores são tratados como mercadoria. O que interessa são os milhões. O futebol profissional, aquele de que toda a gente fala, aquele sobre o qual toda a gente lê, aquele que move multidões, já não é um desporto, é uma profissão. Os jogadores, os treinadores e outros agentes do futebol, ganham quantidades de dinheiro estupidamente altas, absurdamente elevadas, que são uma afronta à fome, ao desemprego, às dificuldades que o comum dos mortais vive diariamente. São uma afronta a todos nós, e mesmo assim, esta indústria, move multidões, que paga bilhetes a preços exorbitantes, quotas elevadas, lê avidamente os jornais que diariamente falam de futebol, ouvem atentamente todos os programas de rádio e de televisão sobre futebol, como se nada mais no nosso quotidiano interessasse. Quantos, para pagar o bilhete que para além das quotas mensais têm de comprar para assistir aos jogos, não deixam mulher e filhos em casa, sem apoio económico.
Hoje, como antes, o futebol aliena as mentes, desde as dos mais sábios às dos mais tacanhos, desde as dos mais educados, às dos mais burgessos.
Hoje,
como antes, convém aos governantes, de uma ponta a outra do espectro político,
que o futebol, a par de outras alienações religiosas ou políticas, seja parte
integrante das nossas vidas.
Não
convém muito, que a população pense pela sua cabeça. Interessa levá-la a pensar
o que o objecto da sua alienação lhe diz para pensar. Se as pessoas pensarem
sozinhas, pode surgir daí uma qualquer ideia disparatada, como por exemplo,
entenderem que estão a ser mal governadas.
Hoje
já só vejo futebol, pela televisão, e desde que o meu clube jogue. Como
qualquer adepto, o meu clube é o maior.
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