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COMO SE FORA UM CONTO, é o título de pequenos contos que ao longo do tempo fui escrevendo.
Na sua maioria foram já publicados em jornais e em blogues.
Alguns são inéditos.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

PARA ESTES NÃO HÁ FUNERAIS DE ESTADO

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COMO SE FORA UM CONTO
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Conheci-a num Centro Comercial. Vendeu-me alguns artigos de que eu necessitava e alguns outros que eu não sabia que queria. A sua simpatia era contagiante e o seu sorriso alegrava a alma.

A conversa, essa, veio naturalmente, e ficamos como que amigos. Fiquei a saber que o trabalho era bom e gratificante, que gostava do que fazia e que fazia o que gostava. Só tinha vinte anos mas já trabalhava há perto de quatro. Por incapacidade económica não tinha estudado mais que até ao fim do ensino obrigatório. Talvez que um dia continuasse. Por agora, sentia-se bem assim. Estava a subir na carreira de empregada de balcão, e até já mandava em parte da sua secção. Para além disso, tinha outros interesses que lhe tomavam todo o tempo disponível.
Era bombeira voluntária. Andava nas ambulâncias a transportar doentes de e para os hospitais, e também no terreno a apagar os fogos que outros atearam em terrenos que não eram dela. E era assim, porque queria que assim fosse. Sentia-se bem a fazer o bem à comunidade, e como ela, havia mais umas quantas na sua corporação. Não era a única bombeira.

No Sábado anterior, tinha saído do seu trabalho pelas dez da noite, dirigiu-se a casa, pegou na farda e foi para o quartel, de onde seguiu para o Gerês. Foi ajudar a apagar o fogo que já lavra há muitos dias por aquelas bandas. Regressou perto das quatro da manhã e às dez, já estava de novo no seu posto de trabalho, no Centro Comercial, uma vez que o seu horário, rotativo, implicava estar lá à abertura da loja. As dificuldades superam-se quando outros valores mais elevados aparecem, disse-me.

Não lhe perguntei pelas motivações que a levavam a fazer o que faz. Não sei que exemplos familiares ou de amigos a levaram a enveredar por aquele caminho. Não lhe perguntei pelo medo que teria muitas vezes de sentir, ao ver-se rodeada de labaredas, ou se valia a pena tanto sacrifício. Falou-me disso e do seu voluntariado como bombeira, com o à vontade e a naturalidade de quem se sente bem consigo mesma, e com orgulho, como se fosse um objectivo de vida.

Lembrei-me da bombeira Josefa, morta enquanto combatia o fogo ateado por fanáticos intolerantes ignorantes e básicos a mando de energúmenos, e do silêncio a que os bombeiros, na sua generalidade são votados. Ninguém lhes reconhece o valor, nem tão pouco o sacrifício individual e anónimo mas esperamos sempre que cumpram a sua “obrigação”. Só nos lembramos deles em alturas de aflição, ou quando são notícias de jornais e televisões pelos piores motivos, quando se aleijam gravemente ou quando morrem durante o combate às chamas. E estes homens e mulheres só lá estão por dedicação social, nunca pelo que recebem ou podem vir a receber em termos económicos. Mesmo assim, para estes, os que morrem, não há funerais de estado, não se dá o seu nome a ruas, não se ouvem discursos laudativos dos políticos, nem há pensões gordas e vitalícias para os seus familiares.

Os incêndios provocam a morte de bombeiros, arruínam o País, enriquecem os que trabalham com madeiras e as empresas que promovem as campanhas de combate a fogos, e levam-nos a conhecer políticos incapazes e incompetentes, negligentes e criminosos, que falam de prevenção com palavras mansas, mas que nada fazem ou deixam fazer para implementar quaisquer limpezas de matas ou contratar vigilantes, ou ainda em sede própria, criar penas pesadas para incendiários e seus mandantes.

De todos os Municípios Portugueses, apenas vinte têm planos de emergência, e dos Planos Municipais de Defesa da Floresta contra os incêndios, poucos foram concretizados em planos operacionais.

O único Parque Nacional de Portugal, sofre ano após ano, a fatalidade de não ter gente competente e/ou meios para ser gerido de acordo com o seu estatuto de conservação. E no resto do País, o mesmo se passa. Verão após Verão, ano sim ano sim, é a chuchadeira de sempre, com os mesmos a ganharem indevidamente e todos os outros a perdermos (vidas incluídas). Onde estão assumidas, política e criminalmente, as responsabilidades do Ministério do Ambiente e do da Administração Interna?

Quantos de nós seríamos capazes de dar tanto da nossa vida aos outros, sem reconhecimento que não seja o de sabermos que cumprimos com o que consideramos que é de direito, seja qual for o voluntariado a que nos dediquemos, bombeiros, ajudantes e acompanhantes de doentes, tratamento dos sem abrigo e de tóxico-dependentes, ou quaisquer outros.

A minha nova amiga merece tudo o que de bom lhe possa acontecer na vida. Guarda os seus momentos de lazer num lugarzinho pequeno e arrumado, gastando o seu tempo livre em proveito da comunidade com a simplicidade que só alguns, bons, conseguem.

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Aventar

 

2 comentários:

  1. há gente especial....cada qual na sua especialidade..há os especiais bons..outros especiais mas menos bons e outros especialmente muito maus...
    uns são especialistas em acender fogos..outros em apagá-los..nós que somos os menos bons teremos de fazer o nosso trabalho também, pondo--nos do lado dos bons e lutando contra os maus...
    ...a justiça tarda..há que lutar por ela, não ficar impassível!!!
    A sua parte já aqui foi muito bem feita!
    ....gostei do que li:)

    Aurora

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  2. O reconhecimento nem sempre chega, isso é uma verdade, mas a alegria de ajudar, ver um sorriso quando as lagrimas teimam em cair já vale a pena todo o sacrificio, o calor, noites mal dormidas e até mesmo o facto de deixarmos praticamente de ter vida pessoal....

    Agradeço todo este carinho para uma simples empregada de balcão e todas as palavras que não estão neste texto mas que são ditas nas suas visitas...

    São poucos as palavras que consigam descrever o meu profundo reconhecimento.

    Obrigado.

    S.P. Bombeira Voluntaria não desde sempre mas para sempre

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