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COMO SE FORA UM CONTO, é o título de pequenos contos que ao longo do tempo fui escrevendo.
Na sua maioria foram já publicados em jornais e em blogues.
Alguns são inéditos.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

AS FÉRIAS GRANDES

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COMO SE FORA UM CONTO
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No tempo da minha juventude, já lá vão muitos anos, e da de quase todos os que têm mais de trinta anos (os meus filhos mais velhos já têm), as férias grandes eram mesmo grandes. Tão grandes que, por vezes, nos víamos a pensar que nunca mais chegavam as aulas. Eram três meses inteirinhos, compridos, muito compridos, feitos de noventa dias a fazer pouco ou nada. Nessa altura, tínhamos, eu e os meus muitos primos e a maior parte dos meus amigos, a praia, desde as nove da manhã até mesmo ao final da tarde, uma estadia de uma ou duas semanas em casa de familiares no campo, e outras tantas em casa de outros familiares, na montanha. Mais tarde, na juventude dos meus filhos, as semanas na montanha tinham já acabado, com o desaparecimento dos familiares que por lá viviam.
Os meus primos, os meus amigos e eu, e mais tarde os meus filhos, pertencíamos a um grupo de privilegiados, uma vez que a maior parte da população das cidades não tinha as nossas possibilidades de escolha, nem muitos familiares predispostos a aturá-los durante parte das férias. Esses, passavam quase todo o tempo na mesma casa de sempre, na mesma praia de sempre, na mesma rua de sempre, sem mais nada que fazer que fazer nada, pensar, ver as ervas a crescer e as marés a subir e a descer.
Por nosso lado, a par do nada ter para fazer, tínhamos tudo. Para além das praias, das marés, das ervas e da rua de sempre, quando íamos para o campo ou para a montanha, tínhamos os frutos, os animais, a lida da terra, os passeios na velha bicicleta pesada e sem mudanças, os campos e a montanha. Passávamos os dias a brincar com paus, fingindo serem juntas de bois ou espadas ou até mesmo cavalos, contemplando os frutos a amadurecer dia a dia, ou extasiados a olhar os vales e as montanhas.
O ter nada para fazer, fazia-nos bem. A todos, os privilegiados e os que o não eram. Nisso, estávamos todos no mesmo «barco». Aprendíamos a lidar com o aborrecimento, com o lento passar dos minutos que às vezes mais pareciam horas, e a conviver com o tédio, tratando-o por tu. Essa aprendizagem permitia-nos pensar e aprender a fazê-lo, observar tudo à nossa volta e desenvolver capacidades para conseguirmos estar de bem com a vida. Aceitávamos o que tínhamos e não éramos menos felizes por isso. As horas e horas que o dia tinha, que conforme as férias iam passando cada vez mais custavam a passar, desde o alvorecer ao cair da noite, mais não eram que uma fatalidade com que tínhamos que conviver. E com todas essas poucas coisas, esse tempo que nunca mais acabava foi-nos muito útil, e éramos felizes.
Hoje, tudo é diferente.
Nos quase três meses de férias, os nossos jovens têm, quase, de tudo. Muito poucos terão o campo ou a montanha para passar uns dias rodeados de ar puro. Mas têm a praia nas zonas quentes do planeta (que as da nossa terra são fracas) para onde vão passar oito ou quinze dias no meio de uma multidão de turistas, têm televisão, PsP’s, consolas, bicicletas, clubes de férias, worshops onde podem aprender a andar de skate ou a pintar paredes com graffitis, aulas para aprender a cozinhar, a andar a cavalo ou a cavalgar as ondas, e toda uma quantidade de coisas destinadas a entreter os miúdos e a desviar dos pais a «chatice» de os aturar.
Não têm sequer tempo para pensar. Não reparam no amadurecimento da fruta ou no crescimento da erva, não olham para o mar extasiados com o bater das ondas sempre diferente, não perdem o olhar nos vales entre montanhas. Não desenvolvem a criatividade nem inventam brincadeiras uma vez que já lhas entregam feitas e empacotadas. Jogam joguinhos de lutas, de corridas, de construções, a sós, parados em frente a um ecrã de computador. Passam o tempo ocupados, de manhã à noite, em actividades compradas, quase sem tempo de desejar que as férias acabem. E mesmo assim, se por qualquer razão estão um quarto de hora sem terem qualquer coisa de diferente para fazer, muitos deles ficam aborrecidos, entediados, sem saberem o que fazer nem como, perdidos num mundo que desconhecem, e demonstram uma infelicidade tremenda.
Sinal dos tempos ou a notória falta de tempo e oportunidade para fazer nada e aprender a pensar na vida?
Será que não se pode mudar isso, para bem deles?

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1 comentário:

  1. A última coisa que hoje se ensina, se ajuda, é a PENSAR. O raciocínio é embotado, dirigido, encarreirado. A liberdade é perigosa.
    Viva a consola, abaixo o tabuleiro de xadrez.
    ENRAIVECE-ME.

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