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COMO SE FORA UM CONTO, é o título de pequenos contos que ao longo do tempo fui escrevendo.
Na sua maioria foram já publicados em jornais e em blogues.
Alguns são inéditos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

AS DORES DA MINHA TRISTEZA E A DONA ANA DA CASA GRANDE

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COMO SE FORA UM CONTO
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Se estiver triste ou alegre ou se se sentir assim-assim, ou ainda se estiver mais sensível do que de costume, não leia. Esta é uma história penosa.
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É quase noite e é forte, a dor da tristeza. É sempre assim, não importando a razão porque se está triste. Desta vez em nada é diferente. Estou triste, e o tempo que tudo cura demora a passar.
É chato o estar triste. E ainda por cima as pessoas olham-nos de través e se tiverem oportunidade, fogem de nós. Para tristeza, basta-lhes a que carregam, não precisam de se aborrecer com a dos outros. Até eu me olho de través, e nessas alturas, se pudesse, ia-me embora de mim, e não voltava.
«Lembro-me que nos meus tempos de miúdo, perto da casa de meu avô, vivia uma senhora que estava sempre triste. Era uma mulher muito rica que vivia sozinha num enorme casarão, sem marido, sem filhos, sem qualquer familiar. Chamavam-lhe dona Ana da casa grande. À sua passagem, falava-se baixinho, comentando o que ninguém sabia. Amores antigos e impossíveis, diziam uns, enquanto outros se inclinavam para as hipóteses de assassinatos múltiplos, perpetrados pelo senhor da casa grande, pai da dona Ana, sobre um seu irmão que teria seduzido a pequena e sobre a mulher que teria ajudado a que tal se concretizasse, e que, cheio de remorsos, acabaria por se matar com um tiro de caçadeira de canos sobrepostos.
Por certo tudo invenções da populaça,
uma vez que fosse de que maneira fosse, ninguém e muito menos eu, soubemos o que a vida lhe fez. Mas, e isso sabe-se de fonte segura, foi-lhe madrasta pela certa. E toda a gente da vila, de uma forma ou de outra, fugia da sua companhia, olhando-a com um olhar enviesado, comentando, bichanando, sussurrando.
Pelas ruas da vila, pelas salas e pelos campos e jardins da casa grande, pela farmácia onde ia diariamente aviar algum remédio ou poção, pelo talho onde comprava a sua bolinha de carne picada, pelo correio onde todos os dias perguntava se havia alguma carta para ela mesmo sabendo que nunca havia, ou pela venda onde ia comprar os dois moletes do dia e um ou outro ingrediente para cozinhar, passeava uma tristeza tal que nem criadagem arranjava para lhe cuidar dos afazeres da casa ou jornaleiros para tratar dos campos, que não fossem trabalhar a muito custo e por compaixão.»
Não gosto nada de me ver desta maneira. Não tenho nada que estar assim, triste, acabrunhado. Não mereço estar triste. Estar triste é uma maçada.
E na verdade não gosto desta tristeza, chego até a detestar-me por me ver assim, porque me dói, e eu detesto que seja o que for, me doa. Porque dói a quem gosta de mim, e eu detesto magoar quem me queira bem. Porque me dói ver o olhar de quem sente indiferença pelo meu sofrimento, ou de quem sente compaixão. E ainda porque não quero dar qualquer prazer a quem gosta de ver ou de saber da minha dor.
No entanto, apesar desta minha aversão, estou triste, e isso dói.
«E dói-me durante algum tempo, embora pouco, que depois passa. Quanto não terá doído à dona Ana da casa grande, estar assim uma vida inteira.
Olhando-se para ela, mais parecia que estava constantemente num velório, chorando por dentro.»
E são tantas as dores que doem. De todas, estas são as piores. Agarram-se a nós como lapas. Invadem-nos, comem-nos, torturam e desmoralizam. Queria, como com as outras dores, aprender a viver com elas. Essas, as outras, sempre e só físicas, deixam de nos pertencer após algum tempo. É como se estivessem fora de nós, e passam a custar menos. São dores que pertencem à dor, e aprendemos a dominar a ciência dessa convivência. Estas, as que agora sinto, as dores da tristeza, não deixam que me habitue a elas, não me deixam aprender a dominá-las. Acabarão por ir embora, “a su tiempo”. “Todo a su tiempo”. Mas são peçonhentas, estas dores, e enquanto não me abandonam, custam a aguentar.
«E acabo por me sentir menos mal com o mal dos outros, neste caso com a dores antigas da senhora da casa grande. Que coisa feia de se sentir! Mas é o que sinto e o que penso, e sei que “a su tiempo” estarei bem, e que à dona Ana, nunca chegou a passar-lhe a tristeza, e a dor, e por isso estou sempre melhor do que ela esteve.»
Não consigo dar a volta a este meu estado de alma, por enquanto. Tenho de esperar que o tempo passe. E enquanto não passa, terei de disfarçar, para que não me vejam assim. Entretanto, e porque estou desta forma, e também porque tive de mentir para os outros para que não me vissem assim, o meu corpo ressente-se, o estômago dói, a cabeça lateja e o futuro que vejo é uma miragem.  A angústia toma conta de mim, sinto-me oprimido.
Felizmente, nestes bocados, estou sozinho. Já ninguém me pode ver. Já é noite e agora o meu quarto é o meu mundo.
A noite é má companhia para estas coisas. Tudo é mais negro. Tudo é ainda mais tenebroso. Não há, nunca há, uma saída airosa seja para o que for. Os meus fantasmas chegam e ficam, assentando arraiais. Mas pelo menos não tenho de mentir. Tudo me é mais verdadeiro.
Nada me apetece. Não tenho fome. Talvez, pensando bem, tenha um pouco de sede. Sinto um descair quase doentio dos músculos da cara. O sorriso desapareceu e não quer sequer pensar em voltar. A paciência esgotou-se já há algum tempo e tudo me irrita. Logo depois a prostração chegou da mesma forma que chegara entretanto o desalento, de supetão. Só me apetece sumir deste mundo e não voltar.
«Quantas noites não terá tido a senhora da casa grande tão más ou piores que esta minha. Alguma vez lhe terá passado a melancolia?»
As coisas do dia-a-dia foram-se fazendo porque teve de ser, mecanicamente, sem pensar nelas, sem dar por isso. O pensamento, esse, tem estado preso numa roda de onde não consegue sair. As palavras repetem-se incessantemente, sempre as mesmas, incompreensivelmente as mesmas, martelando sem parar as paredes fofas do interior da minha cabeça, mais parecendo que não conheço outras.
O sono aparece logo depois da chegada de uma dor de cabeça monstruosa. Até agora, doía simplesmente. Mas não consigo dormir. Bocejo e mais nada. É um completo suplício. Os olhos ardem e pesam, e só me apetece tê-los fechados, mas estou desperto, totalmente desperto e eles mantêm-se arregalados contra a minha vontade. A cabeça lateja, dói como raramente me dói.
E as palavras repetidas não param. Sempre as mesmas, sempre, sempre.
E os fantasmas da noite vêm para me fazerem companhia e não querem ir embora. São bons companheiros. Não nos largam nem por nada.
«E a senhora, seriam assim as noites dela? Que fantasmas a acompanhariam?»
Anseio pela chegada de um sono reparador, que não vem, que não quer vir, que demora a chegar, que vem muito devagar, a não ser quando, já exausto, desisto de tudo, até de pensar.
E sonho que tudo não passa de um sonho mau, de um pesadelo, mesmo sabendo que no dia seguinte tudo estará na mesma, ou pior.
E o tempo, que tudo cura, que não passa!
Até que de manhã, acordo com o sol a entrar-me pela janela do quarto e a bater na parede aos pés da cama, e tudo acalma, tudo regressa à normalidade, e a esperança regressa.
A tristeza já lá vai, já nada mais quer comigo, mas sei que para a senhora dona Ana da casa grande, ela (a tristeza) nunca foi uma outra coisa que não fosse uma companhia constante e uma parceira para a vida.
E isso, dói-me.
A TRISTEZA É UMA COISA QUE A CADA PASSO ME INVADE, COME, TORTURA E DESMORALIZA.
APRENDER A VIVER COM ELA É UMA CIÊNCIA QUE APESAR DE TUDO O QUE ME FOI ACONTECENDO NA VIDA, AINDA NÃO DOMINO.

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