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COMO SE FORA UM CONTO, é o título de pequenos contos que ao longo do tempo fui escrevendo.
Na sua maioria foram já publicados em jornais e em blogues.
Alguns são inéditos.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

AS MINHAS FÉRIAS NA MONTANHA

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COMO SE FORA UM CONTO
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Antigamente, no meu tempo de criança e de adolescente, os afortunados, como eu e meus primos, tinham férias na praia e férias no campo. Nós, os nove netos de meu avô paterno, tínhamos ainda férias na montanha. Éramos duplamente afortunados.
A praia era a de sempre, no Porto, na Foz, a praia de Gondarém. Habituei-me a ela como se fosse a minha roupa interior. Até aos dezassete ou dezoito anos, não conheci outra. Ao longo da vida, acabei por fazer praia em Matosinhos, em Leça, em vários locais do Algarve, e no Porto Santo. Mas sempre venceram, quando as comparava, as férias da praia de Gondarém.
Disso no entanto, falarei noutra altura.
As férias na praia duravam quase dois meses, às vezes mais. As férias no campo, tinham
a duração de semanas, mas nunca eram seguidas. Uns dias agora, outros depois. Uma semana aqui, outra acolá. Nunca tiveram muita expressão enquanto tempo seguido e sem intervalos. Mas era tempo de qualidade, e minha avó tinha pulso de ferro para domar os netos. A educação era uma constante. A aprendizagem necessária, e sempre presente. Iamos para casa do meu avô Júlio, e por lá andávamos, no campo, no curral, na casa do forno, em casa de uns tios que também tinham um grande terreno, etc.. As brincadeiras com os meus primos arrastavam-se pelo dia todo. Foi lá que aprendi a andar de bicicleta. Fiz por lá bons amigos, de que um dia falarei. Era perto do Porto, cerca de trinta quilómetros, num planalto, e os ares eram bons. A vila, hoje uma cidade que cresceu mal, era pacata, e convidava ao descanso e ao fazer nada. Havia, ao longo das ruas, árvores. Grandes amoreiras de enormes amoras brancas e estremamente doces.
O importante, a quinzena que mais desejávamos, os nove netos, uns mais que outros claro, até pela diferença de idades (entre o mais velho e a mais nova havia treze anos de diferença), era a que, em Setembro, iríamos passar a Meneses.
Meneses é uma aldeia quase perdida no cimo do Marão, já a poucos quilómetros de Vila Real. A minha família paterna por parte da minha avó, era de lá, daquela zona. Campeã, Boavista, Gontães, Bisalhães, Paradela, Moçães, Pomarelhos, Arrabães, Torgueda, e por aí fora, num rosário de nomes de aldeias por onde andei ao longo dos anos, fizeram parte, a par com Meneses, da minha infância e da minha juventude.
Meneses era o nosso posto de comando. Lá ficavamos, em casa da sra Margarida e do sr Aurélio, criados (como se dizia na altura e sem sentido algum pejorativo) de meus avós, e ainda parentes afastados por via de um tio casado com uma irmã de minha avó, e homónimo do dono da casa. No fundo eram os nossos grandes amigos, que nos cediam a casa para passarmos dos melhores dias das nossas vidas, e ainda se atarefavam a cuidar de nós. Eram umas excelentes pessoas.
As semanas escolhidas eram duas de Setembro, que ficassem próximam do dia de aniversário do sr Aurélio. Fazíamos uma grande festa em honra dele, nessa altura, e toda a minha família paterna estava presente. Quase parecia que o almoço era em nossa honra e não dele, tal a importância que cada um dava a si mesmo. De qualquer forma, ninguém se esquecia de levar um presente, claro.
Durante os quinze dias em que por lá andávamos, felizes com a liberdade alcançada pela ausência das nossas mães e pais, fazíamos de tudo. Ou melhor, fazíamos de nada, já que só nos deixavam ver como se fazia. Víamos tratar do gado, tratar das terras, tratar das roupas, dos almoços e jantares, e também víamos como o tempo passava devagar, à velocidade dos pachorrentos bois amarelos e de grande cornadura que por lá abundavam. Como me lembro tão bem das idas diárias para o campo, com o meu grande amigo e o irmão mais novo e o pai deles. Como me recordo, como se fosse hoje, dos meus pés nús enterrados na terra molhada, feita lama, das barricas pequeninas de pôr à cinta, com vinho, e da merenda que sempre se levava, que a fome a certa altura apertava.

A VIAGEM

Naquele tempo, já lá vão umas dezenas de anos, íamos para Meneses, de camioneta. Saíamos de Paços de Ferreira, terra de meu pai e onde vivia o meu avõ, ainda a manhã estava sonolenta. Íamos no velho Anglia azul até Paredes. Por lá passava a camioneta da carreira, que vinda do Porto, iria até Vila Real. Eram quatro horas de caminho, com o tempo a aquecer cada vez mais.
Uma primeira parte do trajecto era feita até Amarante, onde se fazia uma paragem prolongada, depois das muitas paragens rápidas para entrarem e saírem pessoas, que a espaços a camioneta fazia. Nessa paragem, que fazia parte do sofrimento que era a viagem, eu aproveitava para ir visitar um amigo da praia a sua casa, o Alberto, que morava mesmo em frente ao local de paragem da carreira, e pertencia a uma família abastada da cidade. A visita era necessariamente rápida, mas servia para lembrar os dias na praia de Gondarém, que recentemente tinham acabado, e para fazer as últimas despedidas até ao verão do ano seguinte. Só nos víamos nessas alturas. Depois de acabarem as nossas idas anuais a Meneses, nunca mais o vi, nem na praia, para onde nunca mais deve ter ido. Anos mais tarde soube que a firma do pai, já não existia, devorada pela voragem dos nossos dias. Dele, nada mais soube.
Quando tínhamos sorte, nós os netos de meu avô, íamos acompanhados unicamente pela sra Margarida, de quem já falei noutra crónica. Ela, coitadinha da senhora, levava ao colo, sempre, um balde e um saco plástico, pois que ainda estaria para vir o dia em que não enjoasse com os solavancos do transporte. Quando a sorte era menor, mas mesmo assim agradável, claro, íamos também acompanhados pela única tia solteira da família. Nessas alturas tudo era mais controlado.
A segunda parte da viagem, ia começar. Mais de duas horas a subir lentamente o Marão. Curvas e mais curvas e contra-curvas. Devagar, muito devagar. E a sra Margarida a enjoar. Padronelo, Ansiães, sempre muito lentamente, com paragens sussessivas e a sra Margarida numa agonia terrível. Quando chegavamos à Campeã e à Boavista, estava já perto o fim do sofrimento, e um sorriso ia aparecendo naquela cara rechonchuda.
Nunca íamos os nove na camioneta. Os dois mais velhos, ou já não iam nessas alturas, ou já tinham permissão de irem mais tarde, de carro. Um ou outro dos restantes, num ano ou noutro faltavam à chamada. Na maior parte dos anos, éramos entre cinco e sete, os que ficávamos os quinze dias inteiros. Desde muito novo e até aos meus dezoito anos, não me lembro de ter faltado vez alguma.
Por fim lá chegávamos ao Alto da Serra. Pouco depois, numa curva da estrada, junto ao Barro Vermelho, saíamos. À nosso espera, o sr Aurélio. A seu lado, um carro de bois, ou de boi, já que a maior parte das vezes em que vinha, só trazia um. Noutros anos, não estava ninguém à nossa espera para nos ajudar, e o caminho até casa era mais penoso. Tínhamos mais uma hora, ou mais, de caminho, pelos montes, a corta mato, a caminho de Meneses.  Iiiióóóó´… iiiiióóóóó … iiiiióóóó… lá íamos nós acompanhados do ruído calmo e característico do eixo de madeira do carro.
Infelizmente, o progresso acabou poucos anos depois com a hipótese de fazermos essa viagem, uma vez que alargaram e arranjaram a estrada entre Arrabães e Meneses, por onde já se podia passar de carro, e era mais fácil e curto o trajecto, mais tarde com os eixos de madeira, e dessa forma com o cantar maravilhoso que os carros faziam. E, mais tarde ainda, a ida para aquele paraíso era feita por cada um por si, ou pelos paizinhos respectivos que nos levavam. A viagem ia perdendo a graça e ganhando comodidade.
O som desses carros de bois, que ainda de madrugada e depois ao fim da tarde, ouvíamos pela serra, ainda hoje ecoa na minha cabeça, e enchem-me de saudade.
A chegada a casa era para nós um momento de glória, depois de tantas horas de caminho.
A casa da sra Margarida, como nós lhe chamáva-mos, era muito pequenina, com pouco menos de quarenta metros quadrados, e a janela de um dos quartos e a da sala estavam viradas a poente. A casa em si, debruçava-se sobre um vale. Nos primeiros anos, nem paredes interiores tinha. As divisões eram feitas por meio de cortinas, e, convenhamos, era fabuloso. Da janela da sala, lá longe, viam-se as antenas no cimo do Marão.
Depois de arrumadas as coisas e instalados e desfeitas as malas ou sacos, era a vez de ir visitar os amigos.
Um ano sem nos ver-mos. Tanto tempo!

A ESTADIA

Da minha idade, os meus amigos eram o A e o O, a A e mais alguns, cujos nomes a memória apagou, provocada por quarenta anos de ausência, que não as caras, essas presentes e marcadas indelevelmente em mim. E todos os outros, que pela idade poderiam ser meus pais ou avós. A sra Isaura, a sra Zulmira, o sr Manuel Inácio, a I, o primo T M, o Zé das porras (interjeição sempre presente nas suas palavras), o Brasileiro, porque esteve para ir para o Brasil embarcado, o B.  
Havia ainda o Padre que tinha um rádio a pilhas que tocava alto na janela, e a irmã mais nova deste, que um dia se zangaram connosco. Tanta gente boa, tantas lembranças saudosas.
Em Meneses viviam os Marta, os Maio, os Miranda, e outros igualmente importantes. Esta aldeia chegou a ter um movimento imenso de pesssoas. Hoje está reduzida a meia dúzia de habitantes.
Depois de tudo arrumado, ou ainda antes dada a euforia do momento, saía de “nossa” casa em direcção à casa do meu amigo A. Por lá, o pai, a mãe e o irmão, davam-me calorosamente as boas vindas. A prova do presunto ou do salpição, acompanhados pelo minúsculo copito de vinho, era obrigatória. Durante a prova, que os donos da casa faziam questão de providenciar, contavam-se as novidades, e punha-se a conversa em dia. Havia sempre muito que contar. Um ano de ausência é muito tempo.
Depois corria as “capelinhas” todas. A casa do primo, a casa do Padre, a casa da A, e acabava em casa da I. Em todos os lados, as mesmas conversas, e as mesmas provas, com as cambiantes próprias das diferenças de interesses de cada um.
O regresso a casa foi numa das vezes, complicado. Convém dizer que entre as duas casas mais afastadas não distavam mais de duzentos metros. A aldeia é pequenina.
Já perto do fim da tarde, com o sol a pôr-se para lá dos montes, regressava eu da minha última visita, quando me perdi. Dei por mim a não saber onde estava nem o que fazia por ali. Depois das muitas provas, quatro ou cinco, de um copito meio cheio de vinho em cada casa, de muitos cigarros (sim, naquela altura eu fumava uns cigarritos) a acompanhar, e de pouco pão de centeio e pouco presunto e salpicão, fiquei um pouco etilizado. Deveria ter perto de dezoito anos quando isso aconteceu. Com muita dificuldade, e também um pouco de sorte, já escuro, cheguei a casa. O jantar foi frugal, mas a bebida continuou a acompanhar-me, assim como os cigarros. Estava instalada a minha primeira bebedeira assumida (tinha havido, anos antes, uma outra, dizem as más línguas, que nunca aceitei que o fosse). Aquela noite ficou-me gravada para sempre. Passei mal, muito mal, e como resultado, não bebi mais durante dois anos, e não fumei durante cinco. Infelizmente ainda retomei o cigarro durante sete anos, altura em que acabei com eles para sempre.
No dia seguinte, começavamos a acalmar da euforia do dia anterior. Com a chegada do pão, fresquíssimo, grande, de centeio ou de mistura, acordávamos. A noite mal se tinha despedido de nós. Depois as coisas habituais. Ver quem ia primeiro à casa de banho, minúscula. Era uma “guerra”. Quem se levantasse mais cedo, mais sorte tinha. Depois, o pequeno almoço. A mesa já posta, o leite, o café, o chocolate, a manteiga, tudo em cima da mesa a chamar por nós. E os seus cheiros, esses, acompanham-me desde então. Quando os sinto, salivo, e uma saudade tremenda apodera-se de mim. Comíamos como se fosse a nossa última refeição. Os ares da montanha tinham começado já a fazer efeito. Saboreávamos tudo muito devagar. Tudo era feito com muita calma.
Como sempre, após ter comido, e em paz comigo e com o mundo, saía, dava a volta à casa, e ficava durante algum tempo, a olhar o vale, a serra e os campos espalhados pela encosta. Também me deliciava a sentir os cheiros que ali eram totalmente diferentes dos da cidade. Não me cansava de olhar. Era a altura do dia que eu mais gostava. Dei comigo a pensar muitas vezes, nos últimos anos que por lá andei, que seria ali que gostaria de vir a acabar os meus dias.
Nos anos, e foram bastantes, em que todos os primos, ou quase, estavam juntos, não havia lugar para todos dormirem em casa da sra Margarida. Por essa razão, eu ia dormir em casa do meu amigo A. Era bom, era diferente. Era uma maravilha.
A casa dele, separada da outra por uma vereda, era antiga, o chão era de largas réguas de madeira, em grande parte por cima das cortes do gado e tinha uma varanda sobre o vale e a serra. Perdia-me de amores pela varanda. Adorava estar lá a olhar, a olhar.
Foi lá que aprendi a ouvir o silêncio, quebrado aqui e além pelo vento, por um restolhar dos braços das árvores, pelo chilrear de algum pássaro ou pelo mugir de algum boi.
Fui muitas vezes com estes meus amigos, “trabalhar” para os campos. Eu nada fazia, claro. Mas levava a enxada, a mais pequena como é evidente, e às vezes a barriquinha do vinho, ou a merenda.
Quando isto acontecia, o dia era diferente para melhor. Os pés nus na lama e nos regos da água, os cheiros, o da terra acabada de cavar, ou o da erva cortada, ou ainda o do folhelho arrancado e atado mesmo ali a meu lado.
Era uma jorna dura, de trabalho árduo, de que eu mal me apercebia. Eu era o menino da cidade que nada sabia fazer e só estava a passar férias. Os meus amigos e o pai deles, trabalhavam quase sem parar. Os intervalos eram raros, e só para um gole na barrica ou para uma bucha de pão.
Quando regressávamos a casa, eu vinha feliz. Sujo de terra, mas feliz. Tinha sido um dia em cheio. Dos que valem a pena lembrar pela vida fora.
Noutras alturas, estamos em Setembro, lembram-se (?), acertávamos na semana da vindima. A azáfama era imensa. Era preciso ser rápido, que havia muita uva para apanhar.
Na minha memória ficaram estampados os grandes cestos de vime onde todos despejávamos o que íamos colhendo, os pequenos cestos pendurados nas ramadas ou nas escadas, as tesouras, os cheiros, sempre os cheiros que ainda hoje sinto, os carros de bois, a alegria estampada no rosto de toda a gente. Nestas coisas eu já ajudava, embora pouco, e por pouco tempo. Depois, mais tarde, quando tudo apanhado, havia o pisar das uvas com os cânticos dos homens descalços dentro do lagar, a pisar, a pisar, a pisar.
Adorava estar no meio deles. Sentia cócegas nos pés ao calcar as uvas. Entalado entre dois dos homens, era engraçado reparar como, ombro com ombro, íamos pisando ritmadamente sem parar. E mais uma vez, o cheiro forte da uva pisada.
Mas os trabalhos que aqui relato, eram esporádicos, para nós, crianças. Na maior parte do tempo, os dias eram gastos em brincadeiras infantis. Um “pau” de milho (o caule da planta, que na sua parte superior faz uma curva onde encaixa a espiga), servia como espada, e também servia como cavalo. Com um pau atravessado a unir dois caules na sua parte superior servia como junta de bois. E lá fazíamos as nossas lutas de capa e espada, as nossas cavalgadas, ou os nossos trabalhos do campo, imitando o som maravilhoso dos carros puxados pelos bois. Iiiiióóóó … íiiiióóóó… íiiióóóó.
As horas passavam bem depressa. Logo logo era noitinha e íamos para casa. Durante o dia só lá passávamos para o almoço ou para o lanche. De resto andávamos pelos montes, sozinhos, sem necessidade de quaisquer cuidados. Por vezes íamos às aldeias vizinhas, Moçães, Torgueda, Arrabães, só por ir, ou para telefonar aos nossos pais, ou ainda para comprar, na “venda”, alguma coisita que a sra Margarida necessitasse (a venda era uma espécie de mercearia onde havia de tudo, desde pão ou grão ou caramelos, até enxadas ou productos para a terra, ou ainda telefone ou serviços de correio). Também para deitar qualquer carta no marco do correio, ou para comprar o respectivo sêlo. Se a memória me não falha, naquelas bandas, só havia um telefone em Moçães e outro em Arrabães. Sá havia marco do correio em Arrabães e uma venda em cada uma dessas aldeias. Em Torgueda, havia a igreja onde aos domingos íamos à missa, e o cemitério.
Foi em Meneses que pela primeira vez, vi lacraus. Os meus amigos mostraram-mos, levantando algumas pedras, e ensinaram-me a não me meter com eles. Foi por lá, que me familiarizei com os bichinhos que existem por todo o lado, aprendendo a não ter medos e a saber respeitá-los. Foi lá, em Meneses que aprendi muito do que a vida é.
As noites eram engraçadas. Quando nada havia para fazer, jogávamos às cartas (ao burro, à bisca dos três ou dos sete, ao crapô ou à canasta), ao dominó, ao jogo chinês e às adivinhas. Tudo debaixo da luz do petromax ou do gasómetro. E era giro. Adorávamos as noites sem horário para deitar.
Mas quando havia que fazer, valia ainda mais a pena. E o que havia para fazer, era trabalho que todos fazíamos com muita satisfação. O mais interessante de todos era o debulhar do milho. Juntavamo-nos numa espécie de cabanal, ou eira fechada, sentavamo-nos em roda e começávamos a debulhar o milho. Havia conversas, cânticos, anedotas, tudo o que se possa imaginar. Na roda, muita gente, nova e menos nova. Rapazes e raparigas das mais diversas idades. Tudo numa alegria imensa, que explodia quando alguém apanhava uma espiga vermelha. O milho rei. O felizardo ou felizarda, tinha então direito a festa, a beijos, a abraços e a ditos maliciosos. Quando tinha a sorte de me calhar a mim, sempre corava de vergonha. Tinha de escolher uma moça para beijar, e a minha timidez não me deixava. A vontade era imensa, e no fim, depois de risos e chacotas, lá acabava por se concretizar o meu prémio. Satisfação interior grande, e a cara mais vermelha que o milho. Havia quem escondesse milho rei atrás das costas para que ciclicamente fosse bafejado com a sorte. Eu, nunca fui capaz de o fazer. Azar o meu!
As férias acabavam depressa. Normalmente no dia de aniversário do dono da casa, ou no Domingo a seguir, que era o dia do almoço, onde toda a minha família ia, e onde quase não se notava que era para festejar a ocasião. No entanto, nunca vi aquele senhor queixar-se de alguma coisa. A felicidade dele e da sra Margarida em nos ter lá a todos, assim como de toda a gente que connosco convivia, era enorme, e não se preocupavam com menores atenções, se é que alguma vez existiram. Eu, também só acabei por reparar nessas coisas, muito mais tarde, e é até possível que nem fosse tanto assim.
A tarde chegava num ápice. Tínhamos de estar no Porto antes de anoitecer, que o Marão era perigoso de descer. Encontrávamos nevoeiro com muita frequência. Pelo menos duas horas de caminho, se não mais.
Despedidas, abraços, promessas, beijos.
-Até para o ano.
-Adeus, até para o ano.
-Façam boa viagem.
-Obrigado, fiquem bem.
Um último aceno antes da curva da estrada que nos impedia a visão.
Uma lágrima no canto do olho, aparecia por vezes, e eu fazia todos os possíveis para a disfarçar, mesmo de mim.
Quando dei por ela, tinham passado alguns anos, muitos, sem que eu lá voltasse naquela altura do ano, e até alguns, demasiados, em que simplesmente não ia de forma alguma. As minhas férias na montanha, naquela aldeia maravilhosa, tinham acabado há muito. E aí, a saudade chegou, mas não havia nada a fazer.
A não ser, talvez, conseguir deixar um testemunho saudoso.


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